‘O mais difícil foi ouvir: contente-se, com sua cor, tem que agradecer’, diz executivo negro

O Globo – 22 de setembro de 2020

O contador Silvio Silva, diretor comercial da Johnson & Johnson Foto: Divulgação / Editoria de Arte

Em depoimento à Karen Garcia

RIO – O debate aberto pela decisão do Magazine Luiza de abrir em 2021 um programa de trainees exclusivamente para candidatos negros trouxe à tona a ainda difícil inserção de pretos e pardos no mundo corporativo num país em que eles são maioria.

Profissionais negros em posição de liderança, os contadores Silvio Silva, Alessandra Lima e Deives Rezende Filho e a engenheira Cristina Pinho contam as dores e vitórias de quem ainda é exceção.

Foi assim

Silvio Jorge Silva, 44 anos, diretor comercial da Johnson & Johnson e líder do grupo de afinidade Soul Afro

“Não deixei com que o sistema social e econômico brasileiro – que não dá espaço para o negro – me colocasse nas estatísticas de não participação do mercado de trabalho. Comecei a trabalhar muito cedo, minha mãe já era viúva e, com quatro filhos, foi sempre a provedora para toda a família, trabalhando fora de casa.

Fui criado em Salvador pela minha avó, que era analfabeta mas de longe a pessoa mais extraordinária que conheci.

Queria trabalhar no setor financeiro, mas surgiu um trabalho de repositor de produtos da Johnson & Johnson num supermercado de Salvador. Pagava o suficiente para cobrir a mensalidade da faculdade de Ciências Contábeis.

De repositor fui para promotor de vendas, até chegar a vendedor, visitando todo o varejo da Bahia, vendendo de loja em loja.

Fui sendo promovido de dois em dois anos, coincidentemente. Passei por vários cargos e também várias regiões, conhecendo o Brasil inteiro. Morei em Teresina, Uberlândia, Rio de Janeiro, Recife, até vir para São Paulo. Desde abril de 2019, estou como diretor comercial.

“No início, achava que as dificuldades eram por ser pobre. Só tive consciência do que é ser negro mais para a frente”

No meu caminho encontrei um grande líder que acreditou em mim e me ensinou também a acreditar, porque até então tudo era muito distante. Isso me impulsionou e muito do que consegui se deve à minha autoestima e ao meu autoconhecimento.

No início, achava que as dificuldades eram por ser pobre. Só tive consciência do que é ser negro mais para a frente.

O momento mais difícil em minha carreira foi ouvir que eu deveria me contentar com o que tinha conquistado. “Contente-se. De onde você veio, com sua cor, você tem que agradecer”. O negro e a negra escutam isso a vida inteira. A sociedade acaba não incentivando o que ele tem, e quando demonstra tem, faz questão de coibir. É uma timidez forçada.

“A questão do racismo é muito forte. Quanto mais você cria autoestima e conhecimento, essas coisas vão diminuindo, mas não somem”

É importante nesse momento que algumas coisas aconteçam de forma um pouco mais extremas para que possamos virar essa engrenagem. Programas como o do Magazine Luiza e outras empresas com foco em negros são sensacionais para mudarmos esse cenário. Não acho que eles vão precisar existir para sempre, mas são um começo para uma equiparação.

Para muitas pessoas, os negros bem-sucedidos são aqueles que apresentam dons. São esportistas, músicos. No ambiente corporativo, onde a concorrência é diária, é essencial comunicar esses exemplos de sucesso para criar representatividade para quem está começando a jornada.

Uma lembrança positiva muito marcante em minha carreira foi quando uma funcionária recém-contratada me procurou e me agradeceu por ter salvado a vida dela. Fiquei muito surpreso e intrigado.

‘Ouvi uma palestra sua e decidi mudar minha vida. Estava em um contexto de violência e você me fez acreditar que era possível. Isso me ajudou a viver’, ela me disse. Mexeu demais comigo”.

Foi assim

Alessandra Lima, 43 anos, gerente financeira da consultoria Bip

“Venho de uma família de quatro irmãs, meu pai e minha mãe. Aos 14 anos, decidi estudar contabilidade. Fiz um colégio técnico em contabilidade. Minha família sempre foi muito humilde, mas muito batalhadora.

No segundo ano, com 16 anos, comecei a fazer estágio na Caixa Econômica. Estudava de manhã, fazia estágio à tarde. Entrei com uma turma de 10 colegas do curso. Sempre trabalhei nas agências mais cheias. Sempre vi esses desafios como algo que me fizesse crescer ainda mais.

“Sempre fui daquelas que, se me pediam para fazer uma coisa, eu entregava uma e meia”

Na faculdade, comecei a trabalhar em banco. Sempre fui daquelas que, se me pediam para fazer uma coisa, eu entregava uma e meia. Não sei se era ingênua demais, mas nunca senti de fato alguém não me escolhendo pela cor da minha pele.

No último ano da faculdade, liguei na central do banco e perguntei se estavam precisando de alguém para a área de contabilidade. E dei a sorte de um gerente ter atendido e ele disse que precisava de ajuda.

“Conforme fui amadurecendo entendi a importância das ações afirmativas”

Tentava levar o dia a dia de maneira leve. Meus colegas e superiores acabavam vendo uma graça na minha vida. Me destacaram para fazer alguns treinamentos.

Quando eu comecei a subir um pouco mais, fui percebendo algumas coisas. Não necessariamente sobre mim, mas ao meio em que eu estava. Conforme fui amadurecendo entendi a importância das ações afirmativas. Se for possível colocar pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades nas melhores faculdades, elas terão um ponto de partida mais igualitário para seguir.

Durante um treinamento para liderança de uma área, quando olhava para o lado, eu era uma das poucas mulheres. Negra, quase sempre a única.

A situação onde mais senti a discriminação foi em uma equipe de 100 gerentes. Éramos apenas duas mulheres tendo que provar a nossa capacidade técnica por conta do gênero. Não podíamos tampouco sair com o grupo no final do expediente para tomar uma cerveja porque tínhamos que voltar para casa para cuidar dos nossos filhos.

“Eu era uma das poucas mulheres e quase sempre a única negra”

O meio que a pessoa vive não pode definir onde ela pode chegar. Nem todas as pessoas tiveram as mesmas oportunidades e os líderes que passaram em minha vida foram muito importantes para o meu desenvolvimento.

Hoje, lidero um time de mais de 80 pessoas. Tenho feedback sempre muito positivo. Quero fazer história. Tenho grandes sonhos e projetos em andamento. Viajar de balão é um deles!

Não vim só para ser mediana. O meu legado tem que ficar. Quero que as pessoas lembrem dessa trajetória. E deixar a minha marca”.

Link da matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/economia/o-mais-dificil-foi-ouvir-contente-se-com-sua-cor-tem-que-agradecer-diz-executivo-negro-24652536

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