Big techs querem tomar conta do seu dinheiro

29 de Dezembro de 2019 – O Globo.

Gigantes como Apple, Google, Facebook e Amazon começam a oferecer produtos financeiros, mas enfrentam ambiente altamente regulado.

Sérgio Matsuura

RIO — Elas conhecem seus amigos e parentes mais próximos, sabem dos seus gostos e preferências e até o que você fez no verão passado. Agora, as gigantes da tecnologia, conhecidas como big techs, também querem tomar conta do seu dinheiro e dos seus gastos.

Aos poucos, empresas como Apple, Google, Facebook e Amazon avançam sobre o setor financeiro, oferecendo serviços que prometem revolucionar uma das mais tradicionais indústrias atrelados ao principal ativo que concentram: informações sobre seus usuários. Para analistas, a experiência delas com consumidores pode até oferecer vantagens, mas o caminho não será fácil, pois terão que enfrentar um ambiente altamente regulado, ao qual não estão acostumadas.

Em parceria com o Goldman Sachs, a Apple lançou seu próprio cartão de crédito, além de oferecer o serviço de pagamento Apple Pay. O Google fechou acordo com o Gitigroup, para que clientes do banco acessem suas contas por meio do aplicativo Google Pay.

Em voo solo, o Facebook lançou seu próprio sistema de pagamentos, que vai funcionar na rede social, no Messenger, no WhatsApp e no Instagram, e tenta convencer governos de todo o mundo sobre a viabilidade da moeda digital Libra. A Amazon oferece empréstimos para comerciantes que usam sua plataforma, enquanto a Uber pretende se tornar o banco dos seus motoristas.

Ambiente regulado

— O nível de governança é de quatro a cinco vezes mais exigente para uma instituição financeira que para uma empresa de tecnologia — analisa Luiz Fabbrine, líder de serviços financeiros e fintechs da consultoria Business Integration Partners. — Os bancos tradicionais já nasceram dentro de um ambiente regulado, estão acostumados a lidar com regras rígidas, o que não acontece com as empresas de tecnologia, que muitas vezes oferecem serviços tão revolucionários que nem possuem regulação. Então, essa questão é um desafio para o ingresso nesse ambiente.

A inspiração vem da China. Por lá, Alibaba e Tencent, duas das maiores companhias do setor de tecnologia na Ásia, praticamente dominaram o setor de pagamentos, substituindo o dinheiro e os cartões de crédito pelos smartphones, ou simplesmente, sorrisos.

As duas testam sistemas de reconhecimento facial para autenticar as transações, mas já impressionam turistas ocidentais que visitam a China com seus meios de pagamentos em estabelecimentos. Muitos nem aceitam mais cartões, apenas o Alipay ou o WeChat Pay, aplicativos que concluem transações por código QR.

A Ant Financial, braço financeiro da Alibaba que opera o Alipay, está avaliada em US$ 150 bilhões, quase o dobro do valor de mercado do Goldman Sachs, banco parceiro da Apple, de US$ 81 bilhões. O Webank, criado pela Tencent há apenas cinco anos, está avaliado em mais de US$ 20 bilhões, sem ter nenhuma agência física, mas oferecendo crédito e controle financeiro pelo mesmo aplicativo que um bilhão de chineses usam para conversar, jogar videogame, ler notícias, chamar um táxi ou pedir comida.

Mesmo assim, as receitas com o setor financeiro ainda são uma fração para as big techs, em cálculo incluindo as chinesas. Segundo relatório do Bank for International Settlements, que coordena bancos centrais de 60 países, o faturamento no segmento representa apenas 11,3% do total, em amostra com Alibaba, Alphabet (controladora do Google), Amazon, Apple, Baidu, Facebook, Grab, Kakao, Mercado Libre, Rakuten, Samsung e Tencent.

— Empresas de tecnologia como Alibaba, Amazon, Facebook, Google e Tencent cresceram rapidamente nas duas últimas décadas. O modelo de negócio dessas big techs se baseia em permitir interações diretas entre um grande número de usuários, gerando como subproduto um grande estoque de dados, que é utilizado para a oferta de uma gama de serviços — explica o coreano Hyun Song Shin, diretor de pesquisas do Bank for International Settlements. E acrescenta:

– Com base nas vantagens dessa rede de dados, essas empresas estão se aventurando em serviços financeiros, incluindo pagamentos, investimentos, seguros e empréstimos. Até agora, esses serviços representam apenas uma pequena parte do faturamento global, mas dado o tamanho dessas companhias e o alcance entre os consumidores, as big techs  têm potencial para provocar mudanças rápidas no setor.

Para Shin, a experiência no trato com dados é a principal vantagem que as empresas de tecnologia podem explorar no setor financeiro. Informações como o histórico de transações, geolocalização, padrões de navegação na rede e outras pegadas digitais, junto com algoritmos de inteligência artificial, permitem que as big techs  melhorem a análise de crédito, ajustem políticas de preços de seguros e personalizem serviços financeiros.

Isso pode gerar mais eficiência, com consequente redução de custos para os usuários e maior inclusão.

— Há evidências de que a entrada de gigantes da tecnologia no setor de crédito, com o uso de dados, gerou um boom de mutuários que eram mal servidos pelos bancos — diz o especialista. — Na China, por exemplo, as maiores plataformas forneceram acesso ao crédito para milhões de pessoas e pequenos negócios que estavam excluídos.

O risco dos algoritmos

Mas o tratamento de dados também é o calcanhar de Aquiles dessas companhias. A Apple, por exemplo, se viu envolvida em escândalo por problemas no algoritmo usado na concessão de crédito do Apple Card. Em redes sociais, vários clientes denunciaram que, em casais, as mulheres receberam menos crédito que os homens, mesmo em casos de contas conjuntas.

Estudos mostraram que nos EUA, negros e hispânicos têm acesso a condições piores do que brancos e asiáticos quando tomam empréstimos avaliados por algoritmos.

E o domínio sobre os dados pode gerar um cenário de prejuízo à competição. Dada a escala e a vantagem tecnológica, as big techs  têm a capacidade de coletar e tratar dados em volumes colossais a custo quase zero. E os dados têm uma vantagem em relação a outros ativos: podem ser usados muitas vezes, até mesmo simultaneamente, para diferentes fins, sem se esgotarem.

Por isso, empresas que lucram com essas informações podem oferecer preços mais baixos nos serviços, ou até mesmo terem prejuízo nessas operações, em troca de informações preciosas dos clientes.

— Quando a posição de dominância for estabelecia, essas firmas podem usar esses dados não apenas para avaliar o risco de crédito, mas para identificar a taxa mais alta que um mutuário estaria disposto a pagar por um empréstimo, ou o prêmio mais alto que um cliente pagaria por um seguro. Assim, as big techs costumam gerar mais receitas com a disponibilidade de dados — alerta Shin. — Existem ainda preocupações importantes com a privacidade, pois a coleta de dados pessoais muitas vezes não é conhecida pelos próprios clientes.

Novos desafios regulatórios

Isso levanta novas questões regulatórias para o setor. A indústria financeira, tradicionalmente, está entre as mais reguladas em todos os países, para garantir a solvência de instituições financeiras individualmente e do sistema como um todo, além de incorporar proteções aos consumidores.

Os instrumentos para estes fins são bem conhecidos, com requerimentos de capital e de liquidez para os bancos, mas a privacidade traz novos desafios. Na Alemanha, o governo já alertou que as big techs terão que seguir as mesmas regras impostas aos bancos, com a mesma supervisão.

Para Flávio Menezes, diretor para o Brasil da consultoria Business Integration Partners, a solução está nas parcerias que as empresas de tecnologia estão formando com bancos tradicionais.

— As empresas de tecnologia têm a vantagem competitiva de oferecer produtos personalizados, mas são os bancos que têm conhecimento e a estrutura regulatória para viabilizar as operações — avalia Menezes. — Existe uma tendência, ao menos no primeiro momento, de aliança do mundo da inovação com o tradicional.

Do lado dos bancos, acontece uma corrida para adaptação aos novos tempos. Apesar de terem grandes bases de clientes, com oferta de diversos serviços, as instituições financeiras não são tão eficientes na coleta de dados fora de seus negócios, seja por questões regulatórias, que muitas vezes impedem essa prática, ou pela própria defasagem tecnológica.

— Eu acredito que o movimento de adaptação tecnológica dos bancos já está acontecendo, com aquisição de fintechs e altos investimentos — diz Fernando Carvalho, sócio da corretora QR Capital. — Estão surgindo bancos que já nascem digitais. Quem não se adaptar, não vai sobreviver, como aconteceu em outros setores da economia.

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